Classe média tomou conta das salas de cinema

Caroline Campos
4 min readNov 1, 2019

Especialistas afirmam que a produção nacional é vítima de preconceito intrínseco às classes sociais no país

Cinema de rua nos anos 50, em São Paulo

Cannes, 2019. “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, do cearense Karim Aïnouz, vence a mostra “Um Certo Olhar”. O pernambucano “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, leva o Prêmio do Júri. Os filmes nacionais foram destaques honrosos na última edição do festival francês. O cinema brasileiro brilha mais do que nunca. No entanto, nem todo o prestígio internacional consegue alterar a errônea reputação atribuída ao nosso cinema dentro do próprio país.

Os estereótipos variam. Há quem diga que filme nacional só tem pornografia e palavrão, outros tentam suavizar e apenas mencionam que até que alguns são bons, mas, no geral, não presta. E assim, o preconceito é perpetuado e a população segue alheia à riqueza da própria produção audiovisual. Mas de onde surgiu essa resistência?

Na visão do professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA/USP, Carlos Augusto Calil, “cinema ficou lazer de classe média”. Segundo o acadêmico, o público popular podia frequentar uma sala de cinema quando o ingresso era barato, época em que havia muitos sucessos em cartaz. Tal público, porém, ficou cercado pelos cinemas de shopping, e o valor dos ingressos aumentou.

Como resultado, a classe média passou a dominar esse espaço cultural — classe média essa que, de acordo com Calil, tem vergonha do país em que vive, e prefere consumir filmes estrangeiros para a própria ilusão de pertencimento a um país desenvolvido.

“Os filmes brasileiros jogam na cara desse espectador nossas mazelas, que o público prefere evitar (…). Na classe média há um mantra que afirma que só o que é estrangeiro é bom. Vale para carro, aparelhos etc. ‘Cinema é cinema estrangeiro’”, afirma o professor.

Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles com o Prêmio do Júri, por “Bacurau”

Já Renato Candido de Lima, cineasta e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, completa que esse desprezo de classes, pautado em um Brasil racialmente conflagrado, também se acentua na própria delimitação de salas. “Há o cinemão de salas UCI e Cinemark, dominados pelos filmes norte-americanos agora com o filão de heróis (…) Numa pequena parte do mercado estão os filmes considerados de arte, filão dominado pela Rede Itaú de Cinemas, Reserva Cultural e outras salas menores”, observa Lima, que também é professor da Fapcom — Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação.

E, no fim das contas, isto é refletido na baixa bilheteria alcançada pelas produções nacionais — as que conseguem ao menos estrear em solo brasileiro.

Além de toda a problemática social, nossa sétima arte ainda sofre com o estigma vindo lá dos anos 1970, período em que a maior parte da produção era composta por pornochanchadas, gênero que mescla comédia e erotismo em filmes de baixo orçamento.

O forte teor pornográfico em um país majoritariamente conservador, apesar de ter lotado as salas de cinema, fez com que a população cultivasse essa visão deturpada de que só se produzia filmes com histórias ruins. “Hoje não é mais assim e, no entanto, o preconceito continua. É difícil combater os estereótipos, que têm sua razão de ser”, complementa Calil.

Com 3.356 salas de cinema espalhadas pelo Brasil, segundo o levantamento feito pela Agência Nacional do Cinema — Ancine, nosso país ainda tem dificuldade em manter suas próprias produções em cartaz, sempre em combate direto com exibições estrangeiras, principalmente norte-americanas.

Esse fenômeno foi observado no último mês de abril com a estreia de “Vingadores: Ultimato” em cerca de 80% das salas do país, retirando de cartaz o filme “De Pernas Pro Ar 3”, comédia brasileira protagonizada por Ingrid Guimarães. Para Lima, o mercado cinematográfico nacional precisa de cotas de exibição para nossos próprios filmes.

Após a polêmica, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, assinou uma regra para a exibição de um percentual de filmes nacionais por ano nos cinemas brasileiros, sem especificar os valores que a cota abrangerá.

Perguntado sobre o futuro da produção nacional, Lima é enfático: “Com este governo é tudo possível (…) Não me impressionaria que ele [o governo] tente acabar com os mecanismos de financiamento da Ancine para corroborar operações de majors americanas como a Netflix, Amazon, Disney e HBO”.

Apesar de termos comemorado o Dia do Cinema Brasileiro no último 19 de junho, ainda vivemos em um país onde cotas são necessárias para incentivar o público a contemplar a própria Arte. O Cinema é a memória de um povo — e a nossa, apesar de riquíssima, se encontra anuviada.

--

--

Caroline Campos

Praticando o jornalismo desde 2019 — ou, até então, tentando.