Classe média tomou conta das salas de cinema
Especialistas afirmam que a produção nacional é vítima de preconceito intrínseco às classes sociais no país
Cannes, 2019. “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, do cearense Karim Aïnouz, vence a mostra “Um Certo Olhar”. O pernambucano “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, leva o Prêmio do Júri. Os filmes nacionais foram destaques honrosos na última edição do festival francês. O cinema brasileiro brilha mais do que nunca. No entanto, nem todo o prestígio internacional consegue alterar a errônea reputação atribuída ao nosso cinema dentro do próprio país.
Os estereótipos variam. Há quem diga que filme nacional só tem pornografia e palavrão, outros tentam suavizar e apenas mencionam que até que alguns são bons, mas, no geral, não presta. E assim, o preconceito é perpetuado e a população segue alheia à riqueza da própria produção audiovisual. Mas de onde surgiu essa resistência?
Na visão do professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA/USP, Carlos Augusto Calil, “cinema ficou lazer de classe média”. Segundo o acadêmico, o público popular podia frequentar uma sala de cinema quando o ingresso era barato, época em que havia muitos sucessos em cartaz. Tal público, porém, ficou cercado pelos cinemas de shopping, e o valor dos ingressos aumentou.
Como resultado, a classe média passou a dominar esse espaço cultural — classe média essa que, de acordo com Calil, tem vergonha do país em que vive, e prefere consumir filmes estrangeiros para a própria ilusão de pertencimento a um país desenvolvido.
“Os filmes brasileiros jogam na cara desse espectador nossas mazelas, que o público prefere evitar (…). Na classe média há um mantra que afirma que só o que é estrangeiro é bom. Vale para carro, aparelhos etc. ‘Cinema é cinema estrangeiro’”, afirma o professor.
Já Renato Candido de Lima, cineasta e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, completa que esse desprezo de classes, pautado em um Brasil racialmente conflagrado, também se acentua na própria delimitação de salas. “Há o cinemão de salas UCI e Cinemark, dominados pelos filmes norte-americanos agora com o filão de heróis (…) Numa pequena parte do mercado estão os filmes considerados de arte, filão dominado pela Rede Itaú de Cinemas, Reserva Cultural e outras salas menores”, observa Lima, que também é professor da Fapcom — Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação.
E, no fim das contas, isto é refletido na baixa bilheteria alcançada pelas produções nacionais — as que conseguem ao menos estrear em solo brasileiro.
Além de toda a problemática social, nossa sétima arte ainda sofre com o estigma vindo lá dos anos 1970, período em que a maior parte da produção era composta por pornochanchadas, gênero que mescla comédia e erotismo em filmes de baixo orçamento.
O forte teor pornográfico em um país majoritariamente conservador, apesar de ter lotado as salas de cinema, fez com que a população cultivasse essa visão deturpada de que só se produzia filmes com histórias ruins. “Hoje não é mais assim e, no entanto, o preconceito continua. É difícil combater os estereótipos, que têm sua razão de ser”, complementa Calil.
Com 3.356 salas de cinema espalhadas pelo Brasil, segundo o levantamento feito pela Agência Nacional do Cinema — Ancine, nosso país ainda tem dificuldade em manter suas próprias produções em cartaz, sempre em combate direto com exibições estrangeiras, principalmente norte-americanas.
Esse fenômeno foi observado no último mês de abril com a estreia de “Vingadores: Ultimato” em cerca de 80% das salas do país, retirando de cartaz o filme “De Pernas Pro Ar 3”, comédia brasileira protagonizada por Ingrid Guimarães. Para Lima, o mercado cinematográfico nacional precisa de cotas de exibição para nossos próprios filmes.
Após a polêmica, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, assinou uma regra para a exibição de um percentual de filmes nacionais por ano nos cinemas brasileiros, sem especificar os valores que a cota abrangerá.
Perguntado sobre o futuro da produção nacional, Lima é enfático: “Com este governo é tudo possível (…) Não me impressionaria que ele [o governo] tente acabar com os mecanismos de financiamento da Ancine para corroborar operações de majors americanas como a Netflix, Amazon, Disney e HBO”.
Apesar de termos comemorado o Dia do Cinema Brasileiro no último 19 de junho, ainda vivemos em um país onde cotas são necessárias para incentivar o público a contemplar a própria Arte. O Cinema é a memória de um povo — e a nossa, apesar de riquíssima, se encontra anuviada.